Cama de gato
AMERICANA (terça. Mas com gosto de segunda) - Minha cama está de zueira com a minha cara. Só pode ser. A minha caminha. A mesma sobre a qual eu durmo desde os seis anos de idade - e já há um bom tempo fico com os pés para fora. Minha cama. A mesma que me deu tantas noites de descanso, de manhãs preguiçosas, na maioria solteiro - como a designação da cama - mas em outras acompanhado (dá-se sempre um jeito de caber alguém), de ver filmes, de noites cansadas, de insônia, de noites longas, de noites de prantos e de extremas alegrias.
A mesma cama que me acolheu chorando copiosamente quando o São Paulo perdeu a final da Libertadores para o Vélez, da Argentina (Palhinha, filho da puta, não te perdôo até hoje por aquele pênalti que perdeste, desgraçado), que me esperou chorar só ao apagar das luzes quando Senna morreu, mas que também me acolheu nas minhas alegrias - e nos acessos de alergia, nas noites asmáticas e pós-operatórias.
Já saí dela, sempre às manhãs, em uma situação, e voltei em outra. Levantei esperançoso e deitei derrotado; levantei cheio de expectativas e deitei frustrado; acordei analfabeto e voltei alfabetizado; levantei sóbrio e dormi xapado; acordei saudável e adormeci adoentado; levantei dormindo e deitei acordado. A mesma cama sobre a qual acordei virgem e me deitei vestindo os louros da vitória, olhando para cima e relembrando, segundo a segundo, aquela maravilhosa noite de junho - e júbilo.
Minha cama viveu muitas novidades. Deu-me sonhos ótimos, mas também me deu os piores pesadelos. Noites de alegrias, de tristezas. Noites - ou algumas horas, e até minutos - de amor insano e de solidão surda. Noites em claro, de calor, de frio, de ficar olhando o céu estrelado pela janela aberta na quentura da madrugada.
Minha cama começa a dar sinais de velhice. Mas ficou uma velha ranzinza. Começou a me pegar de surpresa quando amarrava os sapatos, deixando cair o estrado e me fazendo ficar com as pernas para cima, xingando até a nonna. E agora, deu para me atormentar. Tem um estrado novinho - o outro, em um raro acesso de raiva, eu piquei com o machadinho porque me derrubou de surpresa -, mas como uma velha, mesmo com dentadura nova em folha, continua a reclamar da vida. Do que reclamas, ingrata? Eu não sou gordo! Pelo contrário, eu é que devia estar reclamando porque sempre tenho os pés fora de seu colchão! Tudo bem, você diz, porque deitado todo mundo fica igual, né mesmo?
Sexta-feira, eu dormia. E ela desabou. No sono, a impressão que tive foi a que o chão estava me engolindo. Era o apocalipse. Iria parar no inferno. Eu, que sempre achei que subiria, condensando, espalhando um cheiro de saudade no ar dos vivos, me via descendo, engolido pelo chão, ou pelas tábuas da cama. Acordei. A primeira coisa que veio à cabeça era o agradecimento por estar vivo. Depois xingar a cama, pegar o colchão e dormir na sala.
Hoje, mesmo com uma barra de ferro para segurar o estrado (uma muleta só evita o tombo, mas faz mancar), ela aprontou duas comigo. Amarrava meu tênis, e ela pendeu para a direita, de leve, meio que me avisando: tira sua bunda magra daí! E mais tarde, quando eu ia pegar a chave do carro no criado-mudo (esse não reclama jamais!), ela, a cama, colocou o pezinho, de leve, pra frente para me acertar a canela.
E que canelada. Dói até pra subir uma escada.
Estou vivendo as últimas noites dessa cama ingrata. Logo logo ganho uma de casal (herdo de mama) e com um colchão de molas n-o-v-i-n-h-o. E você, cama de gato, vai para o cemitério das camas. Descanse em paz.
Rá!
7 Comentários:
Eu tinha falado pra vc pegar outra cama!!! Eu te avisei!!!
Enquanto ao texto anterior eu protesto pq vcs não contaram com a minha ilustre presença; mas td bem ALGUÉM tem que trabalhar!
Mas enquanto a cama... podia ser pior. Ahhhh se podia.
Engraçado, todas as vezes que o leio, o invejo. mas uma inveja saudável, de querer contar o que se passa comigo nas mesmas situações... diferentes, porém parecidas.
Deliciosas são suas experiências divididas... sempre!
bjos
Engraçado, todas as vezes que o leio, o invejo. mas uma inveja saudável, de querer contar o que se passa comigo nas mesmas situações... diferentes, porém parecidas.
Deliciosas são suas experiências divididas... sempre!
bjos
A minha antiga, que me acompanhou até minha jornada em Campinas, os cupins comeram. O pior é que era um beliche.
Ahh, não, até com a cama agora você está brigando?!! Não acha que depois de vá lá uns 17 anos te aguentando, depois de tantas aventuras (como vc mesmo descreveu) juntos, ela não merece um descanso?!! Está na hora de aposentar, nada de cemitérios... É o momento de curtir sem ninguém montado em cima, sem nenhum peso pra carregar. Rsss!!! Como sempre escreve que é uma delícia!! Posso ouví-lo falando. Te adoro! Beijos!
vc é hilário! me proporcionou bons momentos de risada!!!
Mas que cama, hein fio? Putz!! Bom, eu já quebrei umas quantas... quando pequena então, bah!! Uma vez de raiva fiquei em cima dela pulando e gritando:"Vou pular, vou pular, vou pular até quebrar!" Fiz isso várias vezes até que despenquei e minha mãe me fez dormir só no colchão durante dias pra eu aprender a não quebrar! ahahhahahha! Mas pelo menos agora tu vai ganhar uma de casal com um colchão novinho!! Serviu pra alguma coisa tu sentir que estava sendo engolido pelo chão, né? Nem tudo está perdido!!
AH, desculpe minha ausência na sua pagina durante dias!! Mas agora VOLTEI!! :D Beijoss!
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